Bárbara Wagner, série "A Corte", 2013

A metodologia do encontro na obra de Bárbara Wagner, por Júlia Rebouças

Ao longo da semana, postamos uma série de textos exclusivos que integram o catálogo da oitava edição do Prêmio PIPA, cada um escrito por um crítico/curador convidado pelos quatro finaistas do Prêmio PIPA 2017. Publicamos, hoje, o último desses textos, de autoria da crítica e curadora Júlia Rebouças, convidada pela vencedora do Prêmio PIPA 2017 Bárbara Wagner.

No texto, Júlia fala sobre as referências da artista, pontuando seu interesse pela cultura popular e pela discussão de temas como gênero, raça e classe, além de explicar um pouco de sua trajetória. A curadora ainda destaca o caráter ético e político do trabalho de Bárbara, que se aproxima de pessoas ou grupos sociais à margem das narrativas hegemônicas e busca estabelecer com eles uma relação de cumplicidade: “Ainda que as imagens transpareçam força, a artista não emula pertencimento, ao passo que também não julga.”

Bárbara Wagner

Júlia Rebouças

Do universo do carnaval pernambucano insurgem os personagens retratados por Bárbara Wagner nas séries “A Corte” e “Faz que vai”. Membros do maracatu e passistas de frevo emprestam seus corpos para o exercício da tradição que, ao mesmo tempo que os remete à história cultural daquela região, também é atravessada pelo presente. Apesar da mise-en-scène pujante do carnaval, são as pessoas que ocupam o interesse da fotografia de Wagner, que faz ressaltar as particularidades de cada sujeito. Nas fotografias, o que se vê é uma personagem em primeiro plano, destacada do contexto, demonstrando ao mesmo tempo fragilidade e potência. É por meio dos indivíduos que surge também um corpo coletivo, termo utilizado pela artista, que está impregnado de questões de gênero, raça e classe. Os universos pop e popular, tão comumente menosprezados pelos sistemas de representação da cultura, são reivindicados na obra de Wagner.

Oriunda do fotojornalismo, a artista traz do registro documental para a sua pesquisa o desejo de comunicar, forjado no limite tênue entre realidade e ficção, exatamente quando são inventados modos de vida e identidades. Se sua fotografia acontece na pose, os personagens encenam a si próprios. Na construção da linguagem, Wagner opta pela manutenção da convenção técnica, valendo-se de recursos simples da publicidade e do jornalismo, sendo o uso do flash, associado à luz ambiente, talvez o mais explícito desses gestos. A torção estaria, em contrapartida, no caráter simbólico do ato de lançar luz, evidenciar as cores, marcar os contornos, jogar com efeitos de claros e escuros, para destacar da multidão um indivíduo que pouco participa das narrativas hegemônicas da arte. A partir de suas imagens, surgem cantores de brega, jovens numa ocupação, pastores evangélicos, MC’s de funk, cada um desses grupos engendrando novas economias sociais, políticas e culturais.

Ainda precocemente a fotografia foi difundida no Brasil, quando já na primeira metade do século XIX era usada para registrar paisagens, vistas urbanas e sobretudo personagens com interesse etnográfico e documental. Também aparecem nesse período os retratos da corte imperial brasileira, sendo Dom Pedro II um incentivador pioneiro da fotografia no país. De repente, “A Corte” de maracatu de Bárbara Wagner propõe um retorno à memória dessas imagens, ao acessar uma iconografia que remete à formação do imaginário do país. A rainha e o rei, os vassalos, princesas e embaixadores aqui têm a pele negra e carregam fantasias desencontradas de suas existências, que misturam perucas, brocados, pedrarias e cetins aos objetos de consumo que marcaram a mobilidade social vivenciada na primeira década dos anos 2000 no Brasil.

Em “Faz que vai”, por sua vez, em coautoria com Benjamin de Búrca, Wagner trabalha com o frevo, gênero musical e performático também da tradição cultural de Pernambuco. Quatro personagens contemporâneos dançam isoladamente, em cenários de urbanização precária, ao som de um frevo executado só nas linhas percussivas, sem a harmonia costumeiramente apresentada pelos instrumentos de sopro. Faz que vai, um dos passos da dança, inspira instabilidade e equilíbrio. Interessados na potência e nos problemas da ideia de folclore hoje, os artistas observam como os corpos atualizam o costume, fazendo coexistir a um só tempo marcadores da cultura pop, gêneros fluidos, aparatos tecnológicos, gestos performáticos, com a indumentária, os passos e a batida do frevo. Contrariam, assim, as reivindicações de purismo feitas pela estrutura estatal e institucional que se serve dessa cultura.

Em sua obra, Bárbara Wagner vai em busca do que está taxado como menos importante ou de baixa qualidade, fazendo do encontro mais do que um conceito, mas uma metodologia. Ainda que as imagens transpareçam força e demonstrem cumplicidade entre Wagner e os sujeitos retratados, a artista não emula pertencimento, ao passo que também não julga, separando pela diferença. Na areia da praia que margeia a comunidade de Brasília Teimosa, no Recife, Wagner realizou o conjunto de fotografias que iria inaugurar sua produção como artista. Por dois anos, sempre aos domingos, frequentou uma das regiões mais populares e no entanto estigmatizadas da cidade. A área foi ocupada nos anos 1950, concomitantemente com a construção da capital federal. Palafitas e barracos sobre o mangue e a praia conformaram a geografia do lugar, que divide com uma ponta a Zona Sul do Recife e o centro da cidade. Diante das sucessivas tentativas de remoção das famílias e de sua aguerrida resistência, foi conferida à comunidade a alcunha de Brasília Teimosa. Em 2004, depois de uma intervenção urbana, foram construídas casas e uma avenida litorânea que requalificaram o bairro. Foi nesse novo cenário que Wagner fez a série fotográfica que ganhou o nome da comunidade e de sua praia.

Se as imagens iniciais foram realizadas ainda à distância, temendo invadir o momento de intimidade e lazer dos seus frequentadores, logo a artista entendeu que a potência de seu trabalho estava justamente na aproximação e nas trocas com seus personagens. Em pouco tempo, os planos abertos e a paisagem não mais lhe interessavam, e sim cada um dos sujeitos com quem se relacionou e a partir daí negociou a produção da imagem. Nessa equação, o corpo retratado está implicado de desejos e expectativas.

Ao longo de sua trajetória artística, Bárbara Wagner vem escolhendo os espaços entre categorias, ciente de sua força política e poética. Essa opção diz respeito não só aos trânsitos conceituais, ao exercício técnico da linguagem, mas também aos sistemas de produção, exibição e crítica da arte. Dessa forma, é importante notar que este texto, que integra a publicação do Prêmio PIPA 2017, desenvolve-se no momento em que instituições museológicas brasileiras passam por um sério ataque a seus conteúdos, obras são censuradas e artistas intimidados. A ofensiva é alimentada por grupos políticos reacionários que apelam a discursos repletos de falso moralismo e desconhecimento. Não é fruto de coincidência que há pouco tempo, e no contexto deste mesmo Prêmio PIPA, a sua plataforma de votação virtual, que gratifica artistas pela escolha popular, tenha sido usada como ferramenta de disseminação de racismo, misoginia e ódio, numa ação operada por grupos e/ou indivíduos que parecem alinhados a essa marcha obscurantista e que têm na sua pauta, entre outros recursos, o constrangimento público à arte, aos seus agentes e instituições. As ofensas, proferidas às artistas – mulheres e negras – foram relativizadas como ataques pessoais alheios à intervenção institucional. Rapidamente, o foco de agressão voltou-se para os museus e suas marcas, espalhou-se em localidades e abrangeu indistintamente exposições as mais diversas, numa clara demonstração de que não há limites para a arbitrariedade e para a sanha persecutória de quem se pauta na intolerância e na ignorância, essas entidades que andam sempre de mãos dadas. Nessa dobra histórica do presente, está ressaltada a importância da arte enquanto formulação de resistência e repositório da livre criação. É papel, portanto, de todo e qualquer agente ou instituição defender o exercício e a expressão de pensamento, mas sobretudo o respeito aos valores da diversidade democrática. Em favor da arte está sua capacidade de resiliência e reinvenção diante de qualquer tentativa de coerção. Não sem prejuízos, mas ela vai sempre ao encontro da liberdade.

SOBRE A AUTORA

Júlia Rebouças é curadora, pesquisadora e crítica de arte. Mestre e Doutora em Artes Visuais pela UFMG, Júlia foi curadora do Instituto Inhotim entre 2007 e 2015 e co-curadora da 32ª Bienal de São Paulo (2016).



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