Ayrson Heráclito, “Elzo jovem lutador de Laamb”, 2015

Guilherme Gutman assina a curadoria de “Luxe DeLuxe”

(Rio de Janeiro, RJ)

“Luxe DeLuxe” é o nome da coletiva que abre hoje, 18 de outubro, na Portas Vilaseca Galeria, e reúne os trabalhos de três artistas representados pela galeria (Ayrson Heráclito, Pedro Victor Brandão, Raquel Nava) e da artista convidada Anitta Boa Vida. A exposição leva a curadoria de Guilherme Gutman, integrante do Comitê de Indicação do Prêmio PIPA 2016, que escreveu, para a mostra, cinco textos interligados. Para cada um dos quatro artistas da exposição, Gutman dedicou um pequeno texto, todos eles remetendo ao texto central.

Leia abaixo, na íntegra, os textos que Guilherme Gutman escreveu para “Luxe deLuxe”:

Anitta Boa Vida, Ayrson Heráclito, Pedro Victor Brandão, Raquel Nava

Guilherme Gutman

Ao som atemporal de Schumann, le bourgeois passeia os olhos pelos quadros de uma exposição. “Mas não ao som de Mussorgski!”, diria, pensando-se arguto.
Alguns dos trabalhos lhe causaram horror ou asco e, ainda que tenha sido esta a sua experiência, jamais permitiria que qualquer outro a tivesse percebido.
De lã, de feltro, de linho ou de seda, o bom homem afila ao alto a sua casaca; depois, olha ao lado e, afinal, avista algo que o tenha convocado em seu desejo.
Olha a coisa obliquamente, mas algo nela, olha-o nos olhos.

***

De súbito, pensa aborrecido: “Mas não há demasiado texto nesta exposição?!” Para quase de imediato esquecer-se do assunto; então, prossegue lendo o texto curatorial.

***

Não admite; e ponto! Mal o admite para si mesmo.
É que ele tem um certo gosto pelo luxo e pelo excesso; pelo desperdício e por contrair despesas.
No fim, ele pensa evitar a morte.
Enche as paredes de suas casas; enche-se de tudo, enche-se da vida.
“Que nota triste deve ser morrer”, mussitou. E buscando alguma firmeza na voz, disse em seguida: Schumann teria tornado-a uma magnífica peça para o seu piano.

***

Tremeu uma angústia fria, ao pensar no número de voltas que daria a cauda do semideus Minós. Não porque temesse o mal, mas por notar que ele era necessário. Ou mais: por perceber que o mal lhe interessava.
Logo, riu-se à larga da Comédia da vida, tomando o medo e o frio e, fazendo-os descrever linha sinuosa, jogando-os para trás e para o fundo.


Anitta Boa Vida

Talvez ao som de Schumann, atemporal, le bourgeois passeia pelos quadros de uma exposição; mas nunca ao som de Mussorgski.
Alguns dos trabalhos expostos lhe causaram horror ou asco e, ainda que os tenha sentido, jamais permitirá que um outro o perceba.
De lã, de feltro, de linho ou de seda, o bom homem afila ao alto a sua casaca; depois olha ao lado e – como tantas vezes – afinal, avista algo que lhe cause o desejo.
Olha obliquamente para o trabalho; mas o trabalho, propriamente, olha-o nos olhos.

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Anitta Boa Vida faz política com corpos.
Sem enganchar-se no fetiche acadêmico – por vezes enfadonho – ela segue à risca a posição de Michel Foucault, que é a de conservar o interesse em trabalhar apenas sobre aquilo que possa incidir sobre a sua forma de vida.
Hoje, flerta com o segundo círculo da Divina Comédia.
Deixa-se fotografar desnuda e fotografa os homens e os volumes de seus pênis.
Em uma série contínua – “Estudos sobre Homens”, presente nesta exposição, fotografa homens bonitos em suas idas à praia; balneário carioca virado de ponta-cabeça.
Mais Eros do que Thanatos; aí reside a força de seu trabalho.
Luxo, luxúria e beleza.
Mesmo a sua Eva, destituída das carnes de anjinho barroco, morde a maçã e, no giro da transgressão constituinte do pecado original, também experimenta a violência do excesso que lhe franze a jovem fronte.
Alair Gomes abre alas e Anitta passa.
Marcia Xavier dá passagem e Anitta avança.
Sarah Lucas insiste e Anitta não sossega.

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Touts les bons bourgeois éteint!
Afinal, trata-se da visão de um coração que não é simples e que, portanto, não é da lavra de Flaubert.
Tampouco se escuta Schumann, mas sim a voz rouca das ruas; para a leitura, o grafo nos muros da cidade.


Ayrson Heráclito

De lã, de feltro, de linho ou de seda, o bom homem afila ao alto a sua casaca; depois, olha ao lado e, afinal, avista algo que o tenha convocado em seu desejo.
Olha a coisa obliquamente, mas algo nela, olha-o nos olhos.
Tremeu uma angústia fria, ao pensar no número de voltas que daria a cauda do semideus Minós. Não porque temesse o mal, mas por notar que ele era necessário. Ou mais: por perceber que o mal lhe interessava.

***

Olha para o mar; olha para além do mar e, no mais além, de volta à terra.
Ayrson se interessa por essa navegação, com seus fluxos e refluxos.
Interessam-lhe outros deuses e semideuses; descoberta de Pierre Fatumbi Verger.
More no mar, na terra, no ar e no fogo.
Presente na atual Biennale de Veneza, há tempos Heráclito desenvolve o seu trabalho numa trilha coerente, segura, espiritualizada, tendo os olhos voltados para tudo aquilo que enlaça a Bahia e seus vetores, ao grande continente africano.
Na foto monumental – em força e dimensão – há a presença de um homem negro, lutador de laamb, luta tradicional em Senegal. O homem jovem está com os olhos docemente fechados, mas a um lutador interessam a docilidade e a violência.
Os olhos fechados evocam os espíritos, os cantos e o seu diálogo com um outro lugar.
Haverá sangue e suor; haverá a luxúria do corpo em sua expressão mais bruta e crua.
Haverá beleza e magia.
Haverá a espera, o movimento rítmico dos braços e das mãos; haverá, afinal o ataque.
Todo lutador sabe que, cedo ou tarde, haverá a glória e haverá a queda.
Sempre houve a dor, o suor, o sangue e o óleo de dendê.
Nesta foto – síntese possível de um longo trabalho – o Brasil diáspora e a diáspora do Brasil.
Escute o som dos búzios de outros mares.
“Se Oriente rapaz”, refavele-se. Combine a miséria à roupa de cetim.
Fechem os seus olhos em silêncio, sob a lembrança do sangue luxuoso e ainda rutilante.


Pedro Victor Brandão

De lã, de feltro, de linho ou de seda, o bom homem afila ao alto a sua casaca; depois, olha ao lado e, afinal, avista algo que o tenha convocado em seu desejo.
Olha a coisa obliquamente, mas algo nela, olha-o nos olhos.
Não admite; e ponto! Mal o admite para si mesmo.
É que ele tem um certo gosto pelo luxo e pelo excesso; pelo desperdício e por contrair despesas.

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Pedro tem interesse – no sentido forte da palavra – pelo fluxo das coisas. Leitor de William e de Henry James, sem sê-lo, quer saber de onde vem o dinheiro, o poder e a informação, e quer saber também onde eles terminam.
Ou, dito de outra forma, ele quer saber quando o sal, a moeda ou a cédula passaram a ter valor e, sobretudo, os modos pelos quais o dinheiro pode deixar de ser arterial, para tornar-se venoso.
Pedro joga com o dinheiro. Aposta as suas fichas na quebra da banca. Ele quer dar valor ao que “não vale nada”.
O seu percurso artístico é centrado na fotografia, por ele manipulada, recriada, esgarçada em seus limites nas séries que produz, ao preço de uma inventividade ímpar e de indubitável excelência técnica.
Tanto o seu “Pintura antifurto”, quanto as duas fotos que representam a sua nova série
“Risco aceitável”, em uma dobra improvável, encontram a exuberância de David LaChapelle em seu Negative Currency: One Hundred Dollar Bill Used As Negative (1990-2008).
A sua iconoclastia aproxima-o do baldio, do Inútil de cada um, do extravio, do brio e do fastio, da expropriação e do desvio.
O seu terreno é o do Quarto Círculo, da Divina Comédia. É também o terreno da vida como opera buffa, que ele intuiu e cercou, pela via de seu trabalho.

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Teria escutado de um transeunte vestido em andrajos: “A parte maldita é o terceiro gole, quando o primeiro foi o da temperança, e o segundo já havia matado a sede”.


Raquel Nava

No fim, ele pensa evitar a morte.
Enche as paredes de suas casas; enche-se de tudo, enche-se da vida.
“Que nota triste deve ser morrer”, mussitou. E buscando alguma firmeza na voz, disse em
seguida: Schumann teria tornado-a uma magnífica peça para o seu piano.
Olha a coisa obliquamente, mas algo nela, olha-o nos olhos.

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Há um ponto em que a vida dá lugar à morte.
Raquel Nava se interessa vivamente, humoristicamente, tragicamente por este que, afinal, é um ponto no tempo.
Ponto final para uma pequena criatura, para uma existência que se fez ínfima, anônima, talvez tendo sido salva apenas pelo brilho de asas antes lépidas; ou por pequenas pernas, agora inertes, que em sua ligeireza, adiaram o instante em que – mesmo para as pequenas criaturas – todo o desejo cessa. Lições da morte.
Promessa de ascese, nos animais miúdos, taxidermizados por Raquel.
Promessa de ressureição no pequeno “Pardal”, com crânio de andorinha e com recordações de Londres.
Além do princípio do prazer, na preá imobilizada pelo entulho de “Escombros”.
O patético da vida em uma das lições da morte.
Uma taxidermista se aproxima muito de algo central na melancolia: pela via de seu engenho – mórbido e esperançoso – entrega um bicho só pele, sem estofo.
Toda promessa provém desse colocar-se de pé, mais uma vez. Ao mais alto preço: a
própria pele, atravessando a vida em um estado de porosidade absurda, opção única à última noite.

***

Tal qual personagem de Flaubert, ora Bouvard, ora Pécuchet, le bon bourgeois se interessa pelo pequeno animal taxidermizado; mas certamente para colocá-lo em sua coleção científica de armarinho oitocentista.

SOBRE O AUTOR

Guilherme Gutman é médico, psiquiatra, psicanalista, e professor do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e da EAV-Parque Lage. Crítico de arte e curador independente, foi membro do Comitê de Indicação do Prêmio PIPA 2016. É autor de William James & Henry James: filosofia, literatura e vida.



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