Relação do humano com a terra guia coletiva com 12 artistas

(Rio de Janeiro, RJ)

A prática de geofagia, ou ingestão de terra, inspirou “Sobre a terra”, coletiva inaugurada no último sábado, 27 de maio, n’A Gentil Carioca. Em uma experiência curatorial organizada por Bernardo Mosqueira, doze artistas – incluindo os indicados ao Prêmio PIPA Maria Laet e Rafael RG e os finalistas Matheus Rocha Pitta e Rodrigo Braga – exploram a relação material, conceitual, política e simbólica entre o humano e a terra.

No mesmo dia, também foram lançadas a individual “Ascensão: cada semente é uma planta”, de Bernardo Ramalho, e a Camisa Educação #72, de autoria de Evandro Machado. Leia, abaixo, o texto de introdução à mostra elaborado pelo curador Bernardo Mosqueira:

primeiro estudo: sobre a terra

Bernardo Mosqueira

(ao meu amor)

Análises de fósseis e vestígios materiais indicam que a geofagia era praticada entre os Homo habilis há 2 milhões de anos e entre os primeiros Homo sapiens há mais de 150 mil anos. Nos últimos 5 milênios, a ingestão de terra esteve presente na cultura de povos das mais diversas origens e, hoje em dia, é hábito comum no interior do Brasil, no Sul dos Estados Unidos, no Haiti e em diversas regiões em todos os continentes. A geofagia é utilizada como forma de disfarçar a fome, com propósitos medicinais, como parte de preceitos ritualísticos ou simplesmente por gosto ou cultura alimentar. Nesse último caso, a terra é utilizada como ingrediente em receitas, como acompanhamento de outros alimentos, na forma de bolos e biscoitos, in natura ou simplesmente temperada com especiarias. Muitas crianças e principalmente mulheres grávidas são acometidas pela alotriofagia (popularmente conhecida como “pica”) e sentem vontade incontrolável de comer terra, barro, tijolo e outros elementos que não são convencionalmente alimentos.

No Brasil, que tem mais de 50% de sua população afrodescendente, a geofagia era comum entre os negros escravizados entre os séculos XVI e XIX, e sua prática era castigada com violência física e com o uso da Máscara de Flandres, cuja imagem sobre o rosto de Anastácia ainda assombra o imaginário brasileiro. O banzo (espécie de saudade profunda do passado africano, limite do sujeito diante da exploração e da desumanização no novo continente) levava muitos negros à morte por desnutrição ou pelo suicídio. Desterritorializados, à distância irremediável de sua terra natal, muitas vezes os negros escravizados se matavam por meio da geofagia excessiva, ou seja, tiravam a própria vida comendo muita terra.

A partir do entendimento da força simbólica desse gesto íntimo de preencher a própria luz digestiva ou própria sombra existencial com terra é que se iniciou uma pesquisa sobre os procedimentos criados pelos artistas para se relacionarem com esse elemento. Dada a amplitude e potência desse tema, essa exposição é necessariamente incompleta – como um punhado de terra diante de todos os solos do planeta. Movimentando-se entre sobre a terra e o subterrâneo (“underground é difícil demais pro brasileiro”), essa mostra reúne uma primeira e contida experiência curatorial sobre a relação material, conceitual, política e simbólica entre o humano e a terra.

Da terra viemos, da terra vivemos, para a terra voltaremos. Está na terra o curso do destino. Se a epistemologia hegemônica confunde terra com território (e, portanto, ser com ter), devemos recorrer a outras epistemologias para compreender que só é possível algum futuro se entendermos ser terra. Ser da terra. É da terra a grande força ancestral, a alimentação, os ciclos naturais, a abundância e a cura. Somente reconhecendo seu poder e relevância, seremos capazes estar com ela num pacto de saúde e prosperidade. Onilé Mojuba! Salubá! Arroboboi! Atotô! Demarcação já! Demarcação já!

“Sobre a terra”, coletiva com Carol Valansi, Maria Laet, Matheus Rocha Pitta, Luiz Alphonsus, Anna Bella Geiger, Guga Ferraz, Rodrigo Braga, Regina Galindo, Hélio Oiticica, Mestre Didi, Rafael RG e Manfredo de Souza Netto
Curadoria de Bernardo Mosqueira
Em cartaz de 29 de maio a 08 de julho de 2017

A Gentil Carioca
Rua Gonçalves Ledo, 11 e 17 (sobrado) – Centro
Funcionamento: seg – sex, 12h às 19h; sáb, com agendamento
T: (21) 2222-1651
correio@agentilcarioca.com.br



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