Finalista ao Prêmio PIPA 2012, quando também venceu o Voto Popular Exposição – o prêmio é dado ao artista que recebe mais votos dos visitantes na exposição dos finalistas no MAM-Rio –, Rodrigo Braga nasceu em Manaus, apesar de ter crescido em Recife, Pernambuco. Em parte graças a essa vivência inicial – que, ele explica, ao longo do tempo tornou-se mítica em seu imaginário –, em parte graças a seu contexto familiar (seus pais, assim como sua irmã, são ambientalistas), sua poética frequentemente aborda a relação entre o homem e a natureza. O assunto é um dos que Braga discute aqui com Luiz Camillo Osorio, curador do Instituto PIPA, em uma entrevista exclusiva que perpassa ainda pela relação do artista com a fotografia e o vídeo, sua formação artística, e a recepção internacional de seu trabalho, que já foi exposto em locais como o Palais de Tokyo, em Paris, e o MoMA PS1, em Nova York. Leia abaixo a entrevista na íntegra:
CONVERSA COM RODRIGO BRAGA, POR LUIZ CAMILLO OSORIO
Fale um pouco de sua formação como artista. Em que momento você percebeu que a arte era um caminho sem retorno?
Posso dizer que minha iniciação na arte ocorreu desde muito cedo, devido a meu interesse pelo desenho. Por volta dos 7 a 10 anos, eu já era um pequeno obstinado por desenhar sobretudo o universo que eu absorvia através dos meus pais biólogos e ambientalistas. Não apenas os grandes reinos animal e vegetal que eu observava nos livros, laboratórios e ao ar livre eram motivos para o registro no traço, mas também arquitetura, cenas de violência e os diversos monstros híbridos aos quais eu atribuía nomes. Então, tendo minha mãe identificado o interesse específico, entrei em um curso de desenho e escultura com o artista Cavani Rosas, em Recife. Com 10 anos de idade eu era o mascote da turma de adultos e acabei sendo convidado pelo professor a fazer um estágio que durou 4 anos. Assim tive meus primeiros estudos ao lado de um artista profissional, aprendendo não só as técnicas, mas sobretudo vivenciando um modo sensível e imaginativo de estar no mundo. Depois disso segui vários cursos ao longo da adolescência, adentrando inclusive pela pintura, indo ao meu limite técnico máximo no figurativo em óleo sobre tela, até esgotar e tender às abstrações já por volta dos 20 anos.
No entanto, ter a segurança para escolher a graduação em Artes Plásticas só ocorreu aos 23 anos, e lá me reconheci não apenas no caminho profissional mas como indivíduo atuante, desfazendo medos e entendendo que aquilo seria um caminho sem volta. Ainda na faculdade participei da minha primeira exposição, tendo sido contemplado com o Prêmio Pernambucano de Novos Talentos, concedido pelo MAC PE em 1999.
Qual o lugar da Amazônia e do debate ambiental na construção de sua poética?
Sou manauara por contingência, já que meus pais, recifenses, faziam mestrado em Ecologia em Manaus na década de 1970 e moravam em um alojamento do INPA, minha primeira casa até os dois anos de idade, quando voltei com eles e minha irmã a Pernambuco. No entanto, essa experiência na primeira infância me fez elaborar, ao longo do meu crescimento e amparado pelos ricos relatos, fotografias e objetos amazônicos, a ideia de pertencer a um lugar que não me pertencia. Assim, enquanto encaminhava minha formação artística, aumentava também a necessidade de retornar a tais origens já míticas em meu imaginário – o que, por falta de recursos da família, não acontecera até minha vida adulta.
A reaproximação efetiva com a Amazônia apenas ocorreu bem mais tarde, em 2010, quando ganhei o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da Funarte, com um projeto direcionado para este entorno. Então diversas viagens se sucederam ao longo dos anos, permanecendo até a atualidade a ligação afetiva, física e profissional com a imensa região.
Apesar de todas as influências óbvias das questões científicas com experiências em diversos biomas brasileiros desde a formação até as primeiras realizações, eu não segui a carreira ambientalista, como optou a minha irmã Maíra, por exemplo. Mais que isso, talvez até por saturação de tal universo em que eu imergia diariamente, acabei constituindo meus trabalhos numa espécie de zona de contrastes entre as crenças éticas herdadas e o embate com os fantasmas da avassaladora “mão humana”. Hoje compreendo que não há em minha produção uma defesa ecológica evidente – como sem dúvida há nos meus parentes mais próximos – mas provavelmente ela existe pelo avesso, levando a reflexões acerca de questões caras ao desenvolvimento da humanidade em sua lida utilitária dos recursos naturais. Ou seja, de tanto me criticarem por ser um tipo de “malfeitor” da natureza, muitas pessoas acabam por atentar sobre questões significativas de seus próprios atos contraditórios. Acontece que os próprios sistemas de extração e manipulação do natural criado pelos homens é matéria e assunto para minhas realizações.
Qual o lugar da fotografia na sua obra? Você busca desenvolvê-la enquanto linguagem artística com valor próprio ou a percebe como registro de ações ou situações poéticas específicas?
É interessante como parte expressiva da minha produção ocorre através da fotografia, outro tanto em vídeo, no entanto a posição que a câmera ocupa em meu fazer acaba sendo ainda mais complexa do que identificar se é linguagem ou registro. Arrisco a dizer que são ambos ao mesmo tempo. É sabido que para mim – como a muitos da minha geração – a fotografia não mais tem apegos bressonianos, e sim características de construção de imagem. Portanto, desde cedo, quando comecei a usar a câmera artisticamente – por volta do ano 2000 – eu entendia o seu maravilhoso poder em “criar mundos”, paradoxalmente a partir das bitolas técnicas do dispositivo e sua clássica ligação com o registro do real. Assim passo a forjar situações a pretexto de verdade, uma vez que a conexão indicial com seu referente permanece na fotografia – o que não ocorre com a pintura, já que tudo nesse universo é representação ou invenção. Quando percebi esse potencial, imediatamente me afastei para sempre da pintura sobre tela, mas encaro que levei suas referências (cromatismos, composições de quadro, texturas, etc.) para a fotografia; de tal modo que costumo dizer que “fotografo como um pintor e realizo vídeos como um fotógrafo”. De fato uma linguagem vai se imbricando com a outra meio que em corrente. Minhas imagens são tidas como muito estéticas, por exemplo, um tanto pictóricas provavelmente. O mesmo acontece com a intenção escultórica, instalativa ou mesmo performativa das minhas imagens. Não tenho dúvidas que meus estudos com escultura me levaram a compor fisicamente no espaço, diretamente com o uso da matéria muitas vezes bruta que se transforma com a ação sobre ela. Com frequência realizei verdadeiras esculturas ou instalações ao ar livre, para nenhum público e lá mesmo permaneceram até serem tomadas de volta pelo entorno natural. O que fica como resíduo dessa aparição construída; seria um mero registro fotográfico? Creio que não, uma vez que eu realizo minhas ações escultóricas ou corporais já voltadas para um único ocular: a objetiva da câmera, que em alguma medida será finalmente o olhar que induzo ao público, que só acessa parte da experiência e mesmo assim sob minha escolha e mediado por um equipamento. O dispositivo é interface entre minhas elaborações físicas em campo e o espectador de arte. É curioso que as únicas pessoas que normalmente conseguem ver minhas instalações ou performances in loco sejam pescadores, boiadeiros, crianças… passantes que às vezes param para conversar a partir da curiosidade.
Por tudo isso, vejo tanto um valor de documentação de um acontecimento, quanto investigação de linguagens e valores através da imagem técnica.
Em relação à questão anterior, mas deslocando dos meios para os fins, caberia tratar do estatuto da imagem na sua obra. Ela funciona para você como presença ou deslocamento? Pensando na relação com a natureza, tão recorrente nas fotografias e nos vídeos, te interessa abordar, dar visibilidade e presença, à perda de uma relação mais direta com a terra ou te interessa explorar a possibilidade de um outro devir-natureza do homem? Vejo estes dois movimentos se alternando em suas obras, mas queria te ouvir um pouco a respeito.
Por razões óbvias é muito comum dizer-se que sou um artista que “trabalho com a natureza”. Sim, assim me coloco e não poderia deixar de ser por motivos visíveis. Mas na base desse engendramento das minhas intervenções nessa natureza, está o humano, talvez até metaforizado ou simbolizado por mim mesmo, uma vez que inserido nas imagens sou evidentemente o indivíduo atuante, o agente das alterações físicas e simbólicas no meio ambiente. Há uns anos dei o título a uma exposição e livro de “Ciclos Alterados”. Essa ideia de intervenção em um sistema estabelecido é o que a racionalidade humana sempre fez e sempre fará, e é essa entropia que muitas vezes espelho com minhas ideias.
Assim, há uma relação muitas vezes conflituosa a partir de um gesto deliberado sobre a natureza, uma espécie de medição de forças entre a ação humana e reação natural, como em “Provisão” (2009), onde paradoxalmente enterro uma árvore para protegê-la, hipoteticamente guardá-la para um futuro pós-catástrofes. Em outra análise seria a mão e razão humanas “acelerando” processos cíclicos naturais de vida e morte ao sabor de suas conveniências. Ocorre que, inevitavelmente, estamos nos mesmos ciclos e juntos ao meio natural nos alteramos, com toda causa e efeito das nossas inserções.
Sim, você está certo, há um “devir-natureza do homem” atuando. Gosto de pensar que minhas coisas acontecem na interface, onde há atuação humana, seja de exploração, seja de criação.
Em pelo menos duas exposições recentes suas, na Casa França Brasil no Rio e no Palais de Tokyo em Paris, vimos a instalação entrar como possibilidade, assumindo uma escala nova monumental que aposta na energia dos materiais. De certa maneira, parece que você deslocou o centro de gravidade de sua poética em direção à materialidade crua e silenciosa da natureza. Como você analisa estas exposições na sua trajetória?
É verdade, comparativamente meus trabalhos iniciais são bastante ruidosos, e chegar ao silêncio das pedras ou de árvores abatidas, por exemplo, pode significar um outro tipo de conduta diante dos corpos ou entes naturais.
Mas no âmago, continuam duas preferências que eu nunca larguei: as matérias com suas densidades simbólicas arquetípicas e a ação, ou melhor, o gesto de transformação do artista. Isso é basicamente a contorção Duchampiana que eu não abro mão, mas trago para a minha própria realidade e desejos de alterar o mundo ao meu alcance.
Os trabalhos que você citou, somados ao “Abrigo de passagem”/”Veículo de Passagem” (realizado em São Paulo em 2015), como também em “Florão da América” (Rio, 2016), de fato trazem escalas diferentes, com o porte dessas grandes cidades onde atuei. Então questões históricas que versam do natural ao urbano também são contempladas nessas quatro obras recentes.
Mesmo assim, é válido verificar o quanto há de composição, de escultórico e até mesmo de fotográfico nas instalações. E tem sido surpreendente ouvir algumas pessoas dizendo: “É como se eu estivesse entrando em uma fotografia sua!”. Na verdade tenho produzido em instituições o que eu sempre fiz sozinho em campo mas o público não tinha acesso senão através das fotografias ou vídeos.
Você que tem feito residências e, cada vez mais, exposições fora do Brasil, percebe formas de recepção distintas do seu trabalho e/ou elementos intraduzíveis de nossa singularidade cultural que não se deixam expressar no estrangeiro?
É uma boa pergunta, pois desde que passei a transitar por instituições no exterior, inevitavelmente tendi a fazer comparações sobre a arte atualmente produzida aqui e em cada país que observo de perto. E o saldo é bastante positivo para os brasileiros, creio eu. Nossa arte contemporânea é de altíssima qualidade em amplos sentidos, das elaborações estéticas aos engendramentos discursivos e críticos, em geral estando mais livres dos hermetismos e maneirismos acadêmicos com que canso de me deparar em outros países, como a França ou Alemanha, por exemplo. Ou ainda, não vejo a arte brasileira se assemelhar ao “show pirotécnico” que muitas vezes está contido na super valorizada arte jovem asiática.
Não posso falar sobre a recepção de outros colegas brasileiros, mas da circulação das minhas obras no exterior tenho ressalvas; em geral não é fácil. Como muitas vezes também é dubitável em nosso território.
Mas sim, há mesmo uma recepção distinta por lá, sobretudo na Europa, que, por incrível que pareça percebo certa dificuldade de interpretar códigos talvez muito nossos em minha produção, então às vezes sinto certo silêncio perplexo, espanto desconfortável, algo entre a curiosidade aguçada e a falta do que dizer… São poucos, e por isso mesmo especiais, críticos ou curadores que conversei em países europeus que conseguem aprofundar a visão e interpretação. Na Ásia, além da curiosidade e interesse aguçadíssimo, há um respeito enorme pela fala do artista, sobretudo os japoneses escutam e se comovem bastante. Nos EUA tenho as melhores experiências de recepção com meu trabalho. Em geral nem é preciso falar muito para ser compreendido. Inclusive, algumas das melhores falas sobre o que produzo vieram de curadores americanos – alguns deles pesquisam e conhecem bastante a arte brasileira.
Fora do âmbito especializado ou do costumaz conhecedor de arte, aí boa parte da minha produção é muitas vezes razamente lida ou até rechaçada no Brasil ou em qualquer país do mundo. Isso tem explicado inclusive a dificuldade da presença dos meus trabalhos em feiras internacionais, por severas críticas por parte do público em geral.
Mas mesmo que haja algumas “singularidades intraduzíveis” é interessante perceber como as grandes questões de fundo em minha produção captura pelo que há de mais subjetivo, arquetípico ou mesmo assombroso.
Quais os novos projetos que você está trabalhando?
Infelizmente o período de crises que se arrasta em nosso país tem tirado muito das possibilidades de quem trabalha no campo da cultura. Portanto, diferentemente de antes, este ano traz mais possibilidades do que certezas. Ainda assim há encaminhamentos para pesquisas que devo fazer, no primeiro semestre, no sertão do Cariri, Geopark Araripe, região de fossilizações entre Ceará e Pernambuco. E no segundo semestre um projeto a partir de uma expedição à Fordilândia, Amazônia, com o coletivo Suspended Spaces, de artistas e cientistas europeus.
Confira algumas das obras citadas pro Rodrigo Braga no texto:
Para outros textos escritos pelo curador para o site do Prêmio PIPA, acesse a Coluna do Camillo.
SOBRE O AUTOR
Luiz Camillo Osorio é curador do Instituto PIPA, conselheiros e um dos idealizadores do Prêmio. É professor e atual diretor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Foi curador do MAM-Rio entre 2009 e 2015.